Em
quem você vai votar? Chegados os tempos de eleição, nos esforçamos para
organizar os nossos pensamentos para explicar os motivos dessa pergunta
não nos fazer o menor sentido. O nosso objetivo é simples de ser
entendido, porém difícil de ser realizado. Queremos demonstrar que o
Estado é a maneira errada de fazer as coisas. Para isso falaremos muito –
mas não o suficiente – e, em alguns momentos, de forma um pouco chata.
Se serve de desculpa, esse foi o único caminho que encontramos.
É
recorrente na história que se pense que o mundo vivido é o único
possível. Essa é uma noção que tem muita força atualmente: muitos
sustentam não haver a possibilidade de uma transformação radical da
sociedade. Claro que nos opomos a isso. Ao contrário do que ocorre com
aqueles que se esforçam para legitimar as dominações, queremos refletir
criticamente sobre o Estado, perceber os aspectos negativos dessa forma
de nos organizarmos para que assim possamos encontrar outras realidades.
Em um mundo em que as relações de opressões aparecem como naturais e
eternas, a crítica coloca em movimento, estimula. Nessa disputa por uma
concepção de sociedade mais livre, é central ver através da história que
as formas como nos constituímos carregam certo grau de arbitrariedade.
Ou seja, conhecemos suficientes maneiras de nos organizarmos para saber
que nenhuma é a única possível. Podem nos chamar de ignorantes ou de
ingênuos, mas esperamos sim que o(s) mundo(s) seja(m) diferente(s). Aqui
negação e esperança se completam em uma dança que busca sair dos
limites do tablado.
O que é o Estado?
O
nosso ponto de partida é o poder. De forma resumida é possível afirmar
que a unidade básica do Estado é o poder político, ou seja, a capacidade
de impor coercitivamente a vontade de umas pessoas sobre a de outras. O
que fundamenta o Estado é a possibilidade de uns exercerem um
poder-sobre outros. É muito claro que esse poder coercitivo não faz
parte da “natureza humana” pelo simples motivo de que existiram muitas
sociedades que se recusaram a se organizar assim. Não sendo natural que
isso ocorra, ele só pode ser entendido através das suas ocorrências. O
Estado é, portanto, uma forma histórica de organização social – dentre
as muitas possíveis.
Porém,
o poder coercitivo não ocorre somente no Estado, portanto, precisamos
de algo mais para nos referir a esse grande monstro. Não é possível
igualar os dois conceitos. Para falarmos do Estado, propriamente dito, é
necessário que estejamos nos deparando com estruturas específicas. A
característica principal do Estado é ser uma instância separada da
coletividade e o fato de ser instituído com o intuito de assegurar
constantemente essa separação. A forma que assume ao realizar isso é uma
estrutura burocrática e hierárquica. Como nos faz lembrar o termo
burocracia, ele tende a suprimir aquilo que é proclamado como seus
objetivos, ou seja, possui uma inércia e uma lógica própria que dominam
as finalidades para as quais elas deveriam servir. As evidências se
invertem: o que podia ser visto como um conjunto de instituições a
serviço da sociedade, transforma-se numa sociedade a serviço das
instituições. A polícia com seus cassetetes que gritam “ordem!”
independente do quão justo é um protesto, é uma boa imagem para essa
deturpação. Nesse esforço de auto-manutenção, é fundamental que seja
respeitada uma estrutura de mando e de obediência que fica clara na
diferença que tem entre o presidente e a faxineira servidora pública.
Nos
perdoem por ainda estarmos trabalhando em termos bastante abstratos.
Uma aproximação com uma teoria crítica do Estado contextualizada
historicamente é possível de ser feita olhando para a relação necessária
dele com o capitalismo. O Estado exerce no capitalismo o papel de
garantidor da dominação de classe ao servir como agente coercitivo de
manutenção do trabalho assalariado. Essa é uma longa discussão, mas,
tentando tornar mais simples o complexo, podemos dizer que no
capitalismo a propriedade privada é central porque possibilita a
dominação daqueles que não possuem os meios de fazer as coisas. O
trabalhador que não possui os meios de produzir é dominado de forma não
pessoal, já que como não possui a propriedade tem que se submeter ao
trabalho assalariado. A garantia dessa propriedade não é exercida pelo
dominador, mas é cedida ao Estado. Focando essa explicação no que mais
nos interessa, é possível afirmar que a existência do Estado como uma
instância separada da sociedade depende das relações capitalistas e
serve para mantê-la. Para tanto o Estado deixa sempre presente a ameaça
de recorrer à violência para que a reprodução do capitalismo ocorra.
Somente a ele cabe a violência legítima e essa é uma ameaça que paira
sobre todos aqueles que questionam as relações de dominação.
E
onde ficamos nós nessa abstração toda? Nos cabe o papel de cidadãos –
mais uma abstração. Nossas particularidades, nossos jeitos, nossos
cheiros são esquecidos para que o Estado consiga nos controlar com suas
políticas públicas. Para eles somos números que ganham características
mais definidas se tivermos dinheiro e boas relações. Um juiz não olha do
mesmo jeito para o negro e para o filho do seu amigo do golfe. Para nós
cabe somente o papel de votar a cada quatro anos, porque qualquer
tentativa de tornar a política cotidiana pode ser considerada perigosa.
Votamos e escolhemos “representantes”. Mesmo que eles quisessem não
conseguiriam nos representar, pois não existe essa massa indefinida
chamada “eleitores”. Existem pessoas díspares e mutáveis que ao escolher
um candidato nunca poderão saber como ele irá atuar nos próximos quatro
anos em questões tão variadas quanto as que um governante manda. Ou
seja, a eleição é mais uma mentira para nos dar a impressão de que temos
alguma escolha em um mundo baseado justamente no controle das nossas
vontades.
Em busca da autonomia
Nessa
configuração tão complexa o Estado se separa do social virando uma
instituição que tenta monopolizar o político. Só se fala de política nas
eleições e nós nos negamos a isso. Defendemos a autonomia, ou seja, que
as pessoas se envolvam diretamente na organização das suas vidas
cotidianas. Isso como indivíduos e como coletividades. A pessoa se forma
no seu estar no mundo e nas suas interações, portanto nunca deve ser
pensado isoladamente. Aqui inserimos a dimensão social da autonomia.
Para a sua realização em um mundo instituído de forma a fortalecer as
dominações como o nosso é importante ressaltar a capacidade instituinte
das ações coletivas. As coletividades conseguem sim mudar a realidade.
Detrás do que aí está e parece tão sólido, existe sempre o pulsar
criativo.
É
nessa potencia criadora que nos confiamos ao pensar como transformar o
mundo. O que fazer para mudar o mundo? Rompê-lo de tantas formas quanto
pudermos e tentar expandir e multiplicar as fissuras e promover a sua
confluência; assim nos disseram e nos parece fazer sentido. Um milhão de
picadas de abelhas. A emancipação depende da recusa, do desobedecer.
Porém não estamos apenas nos distanciando das estruturas de poder,
estamos criando novas práticas cotidianas. O Não deve ser seguido por um
outro-fazer, uma outra atividade que nos torne ativos.
A
construção dessas fissuras nega a ideia de pureza, ou seja, elas estão
permeadas por contradições. A noção de autonomia muitas vezes defende
uma externalidade radical para com o Estado e o capitalismo, porém isso é
problemático por não dar conta das complexidades da nossa realidade.
Cria-se dessa forma uma dicotomia entre autonomia e institucionalização
que se baseia em estados ideais impossíveis de serem estabelecidos. A
simples marginalização não é suficiente para mudar o mundo porque pode
servir de alguma forma para as estruturas opressivas. Além disso, muitas
vezes as fissuras são atividades em tempo parcial que são intercaladas
com a dura necessidade de vender a força de trabalho para garantir a
sobrevivência. Paradoxo? Infelizmente a vida está cheia deles. Porém,
isso não significa se curvar, pois mesmo quando seja lunático
continuaremos exigindo o impossível.
Sabemos
que o contato com o Estado nos faz adotar certos modos de relações
sociais que reforçam as características opressivas elencadas acima. As
leis fazem parte da coesão social capitalista e de sua racionalidade,
portanto, invariavelmente seremos considerados criminosos. Isso não nos
paralisa e nem tampouco faz com que buscamos sempre realizar ações
ilegais, pois sabemos que acima de tudo essa é uma questão de escolha
tática.
Como
já deve estar claro não se trata de conquistar o Estado nem com armas
nem com votos. Não vamos cometer o mesmo erro de achar que o Estado pode
ser um instrumento neutro para facilitar as transformações. Ele é a
maneira errada de fazer as coisas e a boa vontade nunca conseguirá
superar isso. A instrução na conquista do poder inevitavelmente se
converte em uma instrução no próprio poder. Vemos cotidianamente os
partidos e candidatos mais bem intencionados fazerem concessões absurdas
para garantir o sucesso próprio. Esse é um caminho de difícil retorno. A
centralidade do Estado na transformação faz com que se reforce cada vez
mais a soberania do Estado. Um dos motivos que justifica essa defesa é
que existe um grande peso das estruturas e das formas de comportamento
herdadas. Outros fatores que podemos apontar são a separação dos
funcionários estatais que tendem a se manter assim e as pressões para
assegurar a economia – que geralmente não é considerada como deveria, ou
seja, como um sistema de exploração. Não nos interessam os partidos
políticos, pois a transformação através dos olhos do Estado ou de uma
organização centrada no Estado só pode ser feita em nome de outros, para
o “benefício das pessoas”, não uma transformação feita pelas próprias
pessoas. Porém isso é uma relação em que alguns mandam e outros obedecem
– justamente do que queremos nos afastar – porque agir em benefício de
alguém envolve invariavelmente um grau de repressão da autonomia desses
sujeitos.
Se
trata, portanto, de uma transformação da vida cotidiana em um caminho
que não terá fim, mas que se esforçará sempre por terminar as opressões.
Essa é a única maneira de manter em uso o conceito de revolução, pois
os que se centram no Estado demonstraram quão facilmente a ditadura pode
esquecer do proletariado. No lugar de um grande acontecimento, pensamos
em um longo processo. Ela é, portanto, uma revolução não-instrumental,
não é um meio para chegar a um fim, já que todo o caminho é igualmente
importante. Essa é também uma transformação sem certezas, pois não
existe nada no mundo que garanta seu triunfo, ela depende de um eterno
esforço dos seus sujeitos. Isso implica em uma constante auto-crítica
para garantir que o caminho que está sendo construído leve realmente
para mais perto da autonomia.
Terminamos
agradecendo a todos aqueles que já disseram e vivenciaram antes de nós
as mesmas coisas: os autonomistas, os anarquistas e, principalmente, os
sem identidades de todas as partes do mundo.
E a pergunta que fica depois disso tudo é: por que continuar se contentando em votar no menos pior?
AA (Autônomos Anônimos)