quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Respostas à matéria notas de um ex-libertário



Anarquismo partidário e especifismo, paralelamente à tendência neoplataformista, se desenvolveu na América do Sul uma tendência denominada especifismo, que defende postulados parecidos com o plataformismo, ainda que de uma fundamentação diferente e de uma genealogia diferente. Postula que os anarquistas devem se agrupar em organizações de caráter ideológico especificamente anarquista e dali trabalhar nos movimentos sociais.

Também se insiste na unidade teórica, na unidade tática e no desenvolvimento de políticas da organização específica aos movimentos sociais nos quais seus militantes participam. A esta ação denominam inserção social e ' segundo Felipe Correia, teórico da Federação Anarquista do Rio de Janeiro' 'está ligado somente à ideia de retorno organizado dos anarquistas à luta de classes e aos movimentos sociais'. Apesar de seus impulsores diferenciarem sua prática de inserção social do 'entrismo' dos partidos de esquerda, sua prática acaba sendo similar.
O especifismo, ou 'anarquismo organizado'  'como preferem se denominar com os plataformistas, o que é também um sinal de desconsideração a outras formas
organizativas anarquistas ' é crítico ao sintetismo de VolinFaure, e poderia ser considerado um plataformismo sem Plataforma.

 Respostas à matéria notas de um ex-libertário
http://passapalavra.info/2013/11/88650

O meio libertário simplesmente “esquece” que há ainda proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados. Por Antônio Nestor Canelas:

Não é verdade que haja um esquecimento. No Brasil, grande parte das organizações anarquistas não faz parte da tendência ‘especifista’. Tendência essa que se entende como única anarquista social. Sendo assim,  desqualifica quaisquer outras linhagens anarquistas como sendo social, já que só a especifista pode ser a vertente realmente anarquista, o que não é verdade.

“As abelhas operárias podem partir
até os zangões podem ir embora.
a rainha é sua escrava”

haikai de Clube da luta

Esta espécie de relato-crônica abaixo pode ser lida dentro do mesmo espectro político em que se encontram os textos Emancipação ao contrário: relatos de dois ex-trotskistas, que é o da ruptura. Entretanto, lá naquela outra margem, eles estavam a se afogar pela força da correnteza em que se encontravam; deste lado, fica o alerta, estamos a nos afundar diante da própria calmaria das nossas águas.

A tendência ‘especifista’ para além de demonstrar conciliação e alianças jamais apresentou vontade revolucionária armada.

A mescla da primeira com a terceira pessoa no texto faz parte do próprio processo de ruptura (com a autocondescendência), diante da então cumplicidade daquele que escreve com aquilo que descreve.

* * *

Através de um complexo de Midas às avessas, o “meio libertário” sofre da mesma tragédia. A diferença é que Midas fora atendido, já o meio libertário acredita que fora atendido e a cena é como se Midas fosse ao mercado oferecendo cobre acreditando ter ouro em mãos. O ativista libertário diz “eu sou revolucionário” e, consequentemente, tudo que eu toco é revolucionário. Basta que eu aumente meu número de atividades – meu ativismo – para que o processo revolucionário esteja cada vez mais perto.

O autor faz questão de misturar neófitos universitários, acadêmicos recém integrados nas instituições, sem qualquer acúmulo a fim de confundi-los com as tendências discordantes ao ’especifismo’.

Assim, atividades triviais e cotidianas – geralmente pré-capitalistas – como plantar, andar de bicicleta e confeccionar itens de uso pessoal tornam-se, magicamente, revolucionárias. No meio libertário é possível também jogar futebol revolucionário, ter banda revolucionária, ter relação amorosa revolucionária, etc.

Em momento algum, dentro da própria cena punk, ter uma banda é tido como o teto da atividade revolucionária. Existe a compreensão de que a arte é um meio para levar para um público maior o debate e a necessidade de construir a luta do pobre contra o rico. Mas nem de longe isso é tido como a única e exclusiva atividade. Aliás, revolução só tem um significado: luta entre classes.



A possibilidade de ser anarco/anarca qualquer coisa é incrível, numa ausência de medida que contempla um conjunto aberto que tende ao infinito. É fascinante como, num passe de mágica, sustentar uma das mais difíceis posições políticas da história da luta de classes, aquela que já enfrentou na Rússia máquinas de guerra como o Exército Vermelho e o Exército Branco (ao mesmo tempo), fascistas e liberais na Espanha, passou a ser possível através de fazer qualquer coisa e colocar o prefixo anarco/anarca antes.

Na própria Rússia e na Revolução Espanhola de 1936, a esmagadora mojoritária anarquista, formada em grande parte por trabalhadores, que também contava com muitos intelectuais, era constituída de agrupamentos espontâneos. Os laços eram solidários e nada mais. Sim, bastava entender a mão no ar para se tornar voluntário da luta social.

Ao invés de buscar a construção de suas próprias formas autônomas – e sólidas – de organização, a solução que o meio libertário encontrou para o impasse histórico que a esquerda autonomista se encontra diante da esquerda bolchevique é o exercício de uma série de atividades lúdicas, em oposição radical à “burocracia e autoritarismo” desta. (É a “luta de classes” idílica)

A proposta ‘especifista’ é através da propaganda e alianças em frente com os partidos da “esquerda” autoritária para então convencê-los de que a organização específica libertária é o socialismo real. Só então as armas serão empunhadas. Não é nossa proposta de luta de classes. Historicamente essa “esquerda” marxista/leninista/trotskista/stalinista foi traidora dos processos populares nas revoluções. Conservou as garantias à cúpula centralizada do partido e esmagou as iniciativas livres revolucionarias do povo. Nós, anarquistas das inúmeras vertentes e matizes, cada um com uma peça desse quebra-cabeça, temos como foco nos misturarmos às lutas populares com intuito de acelerar, catalizar os processos da base para que se tornem perenes e inicie-se a luta de classes.

O meio libertário ou assumiu que a luta de classes acabou, e então “suas” derrotas para a esquerda bolchevique não são fruto das próprias concepções de ambos, mas de alguns momentos históricos encerrados, ou assumiu que estas concepções estão aí novamente, e então reconhece que elas irão se repetir, mas desta vez, quando a repressão bater novamente, propõe-se a diáspora das bicicletas (escrito Frágil nas costas) ou viver em comunidades da miséria como a Colônia Cecília (opção rural) ou ainda viver em alguma okupA (opção urbana), mais conhecidas como o albergue dos anarco-turistas.

As estratégias, das infinitas matizes libertárias, em momento organizacional, em período de baixa, de dispersão total, como esse período em que vivemos, morar numa comunidade rural ou numa ocupação faz parte das inúmeras formas historicamente libertárias de autonomia. Morar numa ocupa não faz parte da finalidade anarquista. Mente que afirma que um ocupa se entende como ‘pós revolucionário’ por viver nesses locais estratégicos. É inegável que a estratégia de se ocupar um imóvel vazio é necessário formação de grupos, discutir sobre formas de organização, preparar campanhas e etc. A ocupação traz consigo uma economia já que não se paga aluguel do imóvel e automaticamente se denuncia a especulação imobiliária. Mas nem de longe essas estratégias de autonomia, utilizadas para ganhar tempo à organização popular, é tida como finalidade.

No campo da fé, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) é a religião oficial do movimento. A palavra do papa Marcos traz alívio e conforto para o nosso ativismo desenfreado. Mas esta fé contempla a conhecida solução milagrosa de sobrevivência da causa com fiéis não-praticantes, já que está evidente que a disciplina zapatista e a questão da tomada dos meios de produção está fora do horizonte de debate no meio libertário.

É pela falta de conhecimento profundo que o autor constrói essa conclusão rasa e vergonhosa. Grande parte das ocupações das principais cidades na europa enviam militantes para atuar junto às comunidades zapatistas, financiam projetos (como o caso de uma ocupação italiana, que a propósito tem 22 anos ocupada, e foi a principal financiadora de um hospital numa comunidade em chiapas),são responsáveis na criação de comitês permanentes de solidariedade às lutas zapatistas, palestinas, Curdos... que muitas vezes alcançam reconhecimento das academias (e isso não é um critério meritocrático) e penetram nessas torres de marfim.

[*] Já o caso histórico do Exército Negro (Guerrilha Makhnovtchina) é um belo exemplo – e somente – para acusar o autoritarismo dos vermelhos, mas aplicar coletivamente uma página do que Makhno disse, nem pensar.

O caso da makhnovtchina é brutal e muitas vezes trazido como a experiência que ainda não se completou. Mas, diferente da ‘verdade absoluta especifista’ não se chega a conclusão da formação de um partido anarquista. Isso sim é distorção e neoanarquismo.

Mas como todo não-praticante mantemos flertes com intensidades diversas com outras religiões como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que apesar de sofrer algumas restrições por causa do “marxismo” da direção do movimento, tudo se pacifica regado ao bom e velho saudosismo ocidental de algum Paraíso Perdido, (o campo… a natureza…), aquela velha cena tradicional e reacionária do amigo/familiar que vai visitar seus próximos no campo e acha tudo lá belo e harmônico, enquanto todos levantam antes do sol para trabalhar.

Tremenda besteira apontar o MST como exemplo de espaço libertário já que em muitos cadernos de formação a religião marxiniana ressalta a ideologia anarquista exatamente como lênin descreveu: desvio individualista pequeno burguês. A luta camponesa Latino americana é a única capaz do socialismo universal, porém, não organizada como membro do corpo político partidário da esquerda branda que se alia com todas as contradições possíveis a fim de manter o poder conservado. A revolução agrária é o horizonte.

Agora, como os vegetarianos radicais (Vegans, Freegans, Frente de Libertação Animal) do meio libertário articulam seu sentimento de anti-industrialização – numa operação complexa que une primitivismo com universo sem carne – com sua solidariedade ao MST e ao EZLN é para mim ainda um mistério.

Sinceramente, quando o forte da argumentação do autor é a ironia e a desqualificação, o que estava nas “coxas” torna-se ainda mais desanimador e cansativo.
O vegetariano radical (Vegans, Freegans, Frente de Libertação Animal) do meio libertário jamais é assumido como finalidade. É uma estratégia para denunciar a reprodução da produção capitalista opressora sobre tudo o que é vivo e não vivo. É uma proposta estratégica de retirar a espécie humana do centro do universo. Esse entendimento parte da conjuntura histórica em que a humanidade alcançou tal especialização para produzir alimentos podendo não mais se alimentar de animais. Que esse hábito é meramente uma antiga tradição dos tempos em que não se conseguia armazenar alimentos vegetais suficientes para suprir as necessidades humanas em tempos de baixa produção. Ninguém em sã consciência defende o veganismo como parte faltante na sociedade de consumo capitalista, isso é uma distorção trazida daquelas pessoas que olham de fora de algo que não participam.

Talvez sejam eles voluntários para ocupar os lugares dos bois na canga de arar a terra. Quanto aos trabalhadores de frigoríficos – que sofrem LER (não só os funcionários públicos a têm), quando não têm dedos/mãos decepados – azar é o deles, ninguém mandou ir trabalhar com carne.

Não entendi muito bem a colocação do autor nessa parte da matéria. Penso que seja no mínimo infantil supor que logo quem defenda os direitos dos animais seja colocado nos lugares dos bois com cangas. Acho que ninguém em sã consciência iria propor uma bobagem dessas. É certo que haja tratores para fazer esse serviço de aragem de terra ao invés de vidas. Sobre os trabalhadores, em grande maioria empregados clandestinamente na situação análoga escravidão em frigoríficos improvisados espalhados de norte a sul do Brasil, temos sim solidariedade imensa. Entendemos como vítimas assim como os animais levados ao assassinato compulsório.
É ridículo supor que caso se acabe com esses locais escravagistas de trabalho forçado as pessoas não terão outras oportunidades de empregos e é melhor essa condição escrava do que nada.
Pelo avanço que os computadores domésticos tiveram os trabalhadores das fábricas de máquinas de escrever não morreram de fome ou os caçadores de baleias também. Simplesmente mudaram de ‘ramo’.

* * *

Diagnosticar o ser autoritário, principal ou única categoria de investigação do meio libertário, é seu motor político-existencial. Aliás, acusar a esquerda tradicional de autoritária está geralmente a serviço da justificativa permanente de toda sorte de liberalismos e individualismos. Os defeitos da esquerda tradicional transformam-se automaticamente em virtudes do meio libertário. (A bem da verdade, Makhno, quando não Bakunin e Durruti inclusive, são considerados degenerados do meio libertário, pois autoritários iguais à dita esquerda tradicional). Ou seja, todo revolucionário autêntico está fadado a ser “autoritário” para o meio libertário.

Diagnosticar as estratégias e táticas para acelerar os processos revolucionários nas bases, organizar e estruturar locais para estudos, reuniões, debates, encontros bem como propor meios de autogestão popular nas vilas pobres (associações de bairros, sindicatos livres...) são parte das categorias político–existencial do meio libertário. Há uma confusão propositada, nessa matéria, entre exceções do meio libertário colocadas como regras fixas. O pressuposto libertário são as organizações autônomas, horizontais e independentes livre das hierarquias tradicionais das velhas organizações autoritárias político-partidárias. Existe um neo-anarquismo que busca formação de um “partido anarquista” baseado na equivocada interpretação de partido, diferente da noção de partido que havia no século XIX. Essa tentativa de formação de um partido anarquista já era denunciada por Malatesta numa famosa troca de cartas com Makhno.



O que está absolutamente fora do horizonte do meio libertário é o fator proletário em todas estas pautas em que ele transita. Está recalcado do seu pensamento (o anti-intelectualismo é operante) o fato de que andar de bicicleta não faz cócegas na Ford, GM, Fiat, etc. (muito menos resolve a questão da mobilidade urbana para as massas), que fazer hortas urbanas nem belisca a BRFoods, Kraft e Bünge, e que produzir artesanalmente adereços ou utensílios quaisquer não passam perto da Hering, Zara, Malwee, etc. e que morar em oKupAs não combate as grandes construtoras e imobiliárias, etc.

O trabalhador, mas não apenas ele, é parte fundamental da revolução para o meio libertário. Fala sem saber quem afirma inoperância intelectual na tática do ‘andar de bicicleta’ como um fim em si mesmo. A utilização da bicicleta como meio de propagandear a precariedade do plano diretor das principais cidades brasileiras, também é usada por inúmeras organizações políticas e movimentos sociais. Isso demonstra claramente quanto fraco é o argumento que o meio libertário é ‘culturalista’, que se organiza com fim em si mesmo e por aí a fora.
Vale lembrar que as ocupas na Europa estão lá desde o Maio de 68 e que até hoje são focos de resistência anti-capitalista, estrutural na organização de movimentos sociais e gigantescas intervenções mundialmente assistidas e copiadas durante o século XX até os dias de hoje.

Fica a pergunta: será que a esquerda intelectualizada, assim como os anarco-acadêmicos/especifistas que moram em suas enormes casas, muitos ainda nas de seus pais, em bons bairros luxuosos é que estão a fazer a crítica à especulação imobiliária mantendo esses esteriótipos pequeno-burgueses dia a dia, ‘porque a revolução não é amanhã’ como eles mesmos dizem?

E então, indignar-se dentro do meio libertário diante do Comando Revolucionário dos Anarquistas Unidos (CRAU) na televisão é hipocrisia ou falta de autocrítica séria (aquela com desdobramentos políticos). Todavia, infelizmente, a concessão ao ecologicamente correto e a cumplicidade com a sinistra Revolução da Colher não é exclusiva aos “anarquistas”.

Mais tragicamente, assim como os libertadores de animais, o meio libertário e sua principal ferramenta de luta, o boicote, simplesmente “esquecem” que há ainda proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados.

Vale lembrar que a pulverização da reprodução da produção capitalista e suas especificidades mais refinadas para se conservar nos levaram a buscar em nossa criatividade meia e maneiras de continuar a propagandear a luta proletária diferente dos antigos métodos coptados pelo sistema. Métodos esses que se tornaram ineficazes pela entrega feita da antiga esquerda que sentiu necessidade de articular alianças espúrias com inimigos de classe para se manter viva e entregou organizações populares de bandeja para os grandes empresários transnacionais.
Assim como andar de bicicleta, boicotar empresas, ocupar casas, são meio de propagandear a autogestão popular e também ganhar tempo para reorganizar as lutas pela guerra social.